...Teve o dia em que a filha do fazendeiro saiu em disparada para a casa. Havia conhecido o palhaço do circo que a cortejou de imediato, lançando-lhe de cima daquelas pernas de pau, uma rosa vermelha que caiu bem ao alcance das suas mãos. Trêmula, ela pegou a flor magnífica que por tanto tempo simbolizava o silêncio. Daí o olhar que se encontrara e a fuga em disparada na direção da sua casa.
Chegou ofegante, entrando pela cozinha. Queria fugir dos olhares (incômodos) da mãe, e das perguntas (irritantes) do pai. Passou que nem um raio, desviando das panelas, mas não conseguiu se desvencilhar do olhar perceptivo da cozinheira. Esta era uma mulher de pouco mais de cinqüenta anos. Quarenta e nove ali. Participara do parto da filha do fazendeiro e, em muitos momentos, participara das suas vivências infantis, das suas rebeldias de adolescente, e desconfiara que estivesse participando de um novo momento da vida da menina, quando ela corava quando se falava de namoro, ou quando se aproximava daquele ambiente, a cozinha, quando o rádio disparava a tocar músicas apaixonantes. Fingia comer uma fruta – goiaba que ela adorava – que só terminava quando a música também se encerrava. Naquele dia em que ela passou voando pela cozinha, Ela notou seu rosto rubro e a rosa em suas mãos. Guardou para si. Voltou-se ao fogão onde preparava uma suculenta feijoada, que seria acompanhada por arroz branco, salada de tomate e farinha.
No seu quarto, protegida por paredes, almofadas, música e um belo cachorro, a filha do fazendeiro envolvia-se em atordoantes, confusos e picantes pensamentos. Quem seria aquele homem mascarado pela pintura, que lhe lançara aquela rosa e um olhar tão penetrante? Lembrava dos seus dez, onze, doze anos... Constantemente era levada aos circos que se armavam naquelas bandas. Adorava os números de mágica e sorria até quase não se agüentar, com as trapalhadas dos palhaços. Sentia falta dos circos, que há quase seis anos não conseguia chegar ali. A seca prolongada que se alastrara um dia, deu lugar a um intenso período de chuvas, que não permitia que nenhum carro conseguisse passar por aquelas estradas, entrecortadas que eram por riachos, beiradas de tanques e açudes, que sangravam intensamente como se dizia por lá. O caminho virava uma pasta e ninguém ousava passar, a não ser a pé, ou a cavalo. Agora, seis anos depois das secas e das chuvas, chegara um caminhão, nos rastros dos carros de bois e de produtos agrícolas que compunham a feira livre.
Como eles sempre faziam depois que subiam a lona, saiam no final da tarde para divulgar o espetáculo. Entoavam músicas engraçadas, enquanto batiam insistentemente os pratos que carregavam. Ela saíra de casa para ver algumas amigas na Rua Direita e passar no armarinho, onde compraria água da flor que cheira e dois pacotes de misses. Na saída da loja deparara-se com o cortejo: palhaços e malabarista que usavam cantigas para chamar o público para o espetáculo que marcaria a abertura da temporada – assim eles diziam – ali, naquelas bandas. Um monte de meninos gritava endoidecidos acompanhando os artistas. Na saída, encontrou-se com este grupo e deu-se o momento mágico. Aquele palhaço com losângulos vermelhos nos olhos e uma pintura branca na boca, lançara-lhe a rosa vermelha e acendera com o gesto, seu desejo por homens enigmáticos. Controlara a situação, fora verdade, mas até o momento em que estava para dobrar a esquina da Rua de Aurora, onde ficava a sua casa. Aí deu-se a disparada.
No seu quarto seus pensamentos iam longe. Imaginava a chegada daquele homem, batendo sorrateiramente na sua janela. Ele havia tirado a pintura da boca, mas não a dos olhos. Continuavam lá aqueles dois losângulos vermelhos que marcavam o enigmático sujeito. Ela fechara os olhos enquanto ele a puxara ao seu encontro. Estava apenas com uma lingerie. Um suspiro longo e o toque das mãos fizeram com que ela tremesse e reagisse favoravelmente a um longo e lambuzado beijo. Estava vivendo a sua fantasia. Um homem misterioso invadia a sua casa, avançava pela janela e ela não conseguia sair do transe de desejo em que se encontrava. Por um breve momento pensou nos pais. A mãe com sua voz de veludo, pacientemente lhe dava conselhos. Quantas vezes não dormira assim? E o pai, de voz grave e postura brava, que se escondia entre o personagem de marido fiel e pai dedicado, mas que ela já havia visto no leito do rio, abraçando a filha da vizinha morena, fazendo-lhe carícias nas coxas, abrindo seu vestido, enquanto roupas iam sendo levadas pela correnteza do rio. Lembrava que sentira raiva, inveja, decepção... Tudo ao mesmo tempo! Sonhara outras vezes com esta cena, mas era ela no lugar da filha da vizinha morena e era um homem mascarado a acariciar-lhe as coxas, bunda, seios... A partir-lhe os lábios enquanto beijava-lhe e sussurrava ser aquele beijo, aquela boca, semelhante manga, lambuzada, doce, desejada... Agora diante do palhaço que entrava pela janela, tinha a sensação de que aquele era o seu destino.
Aos dezessete anos ela temeu pela primeira vez um homem enquanto tal. Conhecera-o numa festa da Matriz, em Janeiro, quando todos os olhares se dirigiam, ou para as carroças enfeitadas e barracas dos arredores, ou para a Igreja e sua multidão de gente que insistia tanto em rezar. Ela largara-se dos pais lá dentro da Igreja e viera observar a parte profana da festa. Ao passar das carroças, uma multidão se aproximara de onde ela estava para vero cortejo passar e formara um cordão inviolável, que não a deixava passar. Estava ela ali, presa, a ter que ver todo aquele cortejo, sem poder desprender-se sentindo aqueles corpos tão próximos a ela. Um sujeito, talvez da sua idade, se aproximara tanto dela, que podia senti-lo pulsar. Se assustou tanto quanto gostou daquela situação. Não podia sair, para não forçar e cair na rua, onde passava o cortejo de carroças, não queria sair, pois sabia que ninguém os via, ninguém – diante daqueles gritos e xingamentos e talcos jogados – percebia que ela estava forçando-se para trás, enquanto ele grudava as mãos na sua cintura,ameaçando algumas vezes, deslizá-las até outros lugares. Mais uma vez vermelha e ciente da situação que vivia, largou-se num repente para além da barraca. O sino anunciava o final da missa e ela precisava encontrar-se com seus pais na saída da Igreja. Suas mãos suavam enquanto se desprendia do rapaz que, trêmulo também, pedia-lhe para revê-la. Não podia escutar nada. Não devia também. Disparou pelo corredor em direção à Igreja da Matriz. Chegou a tempo de esperar seus pais saírem. Com eles fizera o caminho de retorno à fazenda, sem deixar de pensar na cena por um só momento. Carregava aquele rapaz nos balões de pensamentos e, em casa, ao banhar-se, enquanto acariciava-se, tentava escondê-lo, tirá-lo de perto de si, dos seus sonhos sem conseguir. Ali ela se entregava e chegava a gritos e soluços incompreensíveis. Quando voltava à razão, passava a ter medo do rapaz.
Outras vezes fora surpreendida pela empregada cozinheira no banho. Ela chegara à porta para socorrê-la, acudi-la, como se falava por ali, depois de ouvir tais gritos. Acontecera algo, decerto! Não era nada. Ela estava envolvida em outros destes pensamentos e, enquanto banhava-se, perdia a noção de tempo, de espaço... Perdia o rumo da história da casa e tomada pela situação, soltava gritos e gemidos de prazer que, quando chegavam aos ouvidos da empregada cozinheira, pareciam ser soluços de tristeza (dizia ela), de choro, talvez algum acidente no banho...
Algumas (poucas) vezes ela fora ao cinema, acompanhada por amigas, mas voltando sempre para a casa com os pais. Saía da Senhor dos Passos, da altura do Cine Santanópolis, envoltas pelas cenas românticas e de aventuras dos filmes que lhe satisfariam profundamente. O filme que terminara de ver por várias vezes provocaria-lhe suspiros e sonhos. Nos sonhos estaria envolvida numa daquelas cenas, em situações amorosas, agarrada, sendo levada para uma doce viagem, regada a beijos molhados, banhos de mar, festas e noites de gemidos...