17h40min. A sirene anunciava o fim da aula daquela tarde quente de outubro. O barulho dos estudantes – gargalhadas, pastas que caíam, gritos – contrastavam com o seu ritual silencioso: delicadamente ela recolhia livros e cadernos, guardava lápis e canetas e fechava o zíper da sua mochila. Flutuava em direção à porta da sala e se dirigia ao portão de saída. Era sempre acompanhada por duas, três, quatro amigas que moravam por perto. Andava meio calada ultimamente. Talvez triste, talvez cansada... Franzia a testa e esticava a sobrancelha olhando constantemente para o chão (O que procurava?). Sempre que passava das três, na hora do intervalo, ela conseguia afastar-se das colegas e refugiar-se na sua cadeira, que ficava quase ao fundo da sala. Iniciava um ritual de olhar para suas mãos, para o caderno aberto numa eterna folha em branco e... para o chão. Raramente desgrudava os olhos dali. Na época parecia possuir cerca de dezesseis anos (talvez dezessete). Era morena, longos cabelos escuros encaracolados, alta, lábios finos, olhar reflexivo, atenciosa, meiga, inteligente... Não sei o que aconteceu quando me deparei com ela pela primeira vez. Havia saído do sertão da Bahia, Norte-Nordeste do Estado, divisa com Sergipe e Alagoas. Não reparava mais do que carcarás quando voavam, araras-azuis quando gritavam passando em bando, ou cabras leiteiras que precisava apartar para o outro dia. Mas reparei que a menina ficou inquieta, só não percebi até quanto naquele momento. Reparei que desviou o olhar, mas não sabia julgar que importunara. Sei que aquela calça azul e aquela blusa branca que ela usava, parecia ser a farda de colégio mais bem feita que alguém poderia usar. Sua cintura era esculpida, sua bunda era ligeiramente arrebitada e num tamanho perfeito. E os seios ficavam “de prontidão”, sempre durinhos, bico enrijecido... Uma criatura, um demônio para nossos olhos masculinos. Passei a notar que ela modificava seu comportamento quando eu estava por perto. Ora agressiva – pelas respostas que dava - ora complacente – pela cara que fazia quando, à sós comigo, puxava algum tipo de conversa. Nunca vira algo parecido lá pelas bandas. Mundo, mundo... O que acontecia com aquela menina?
Certa feita decidi caminhar na direção da sala de aula para encontrar olhares, encontrar pensamentos perdidos. Ela estava lá. Mesma fila, mesma cadeira, mesma roupa, mesma folha em branco... Mesma inquietação quando me aproximei. Segui firme naquela direção. Senti que estava acuada, amedrontada pela minha aproximação. Mas não pensei em mudar de direção. Firme, sentei-me de frente e pus a minha mão direita sobre a sua. Fingi recolher a caneta e passei a escrever naquela folha em branco. Iniciei com dizeres sobre seu olhar, sua boca, seu rosto. Passei para nossos olhares, nossas conversas, nossas inquietações. Cheguei com o texto naquela minha presença tão próximo a ela... Cheguei ao carinho na sua mão, nos dedos em seus longos cabelos escuros... Sabia que ela acompanhava o texto produzido. Mas o toque da sirene indicando o fim do intervalo nos interrompeu. Meninas do bando que andava com ela surgiram gritando ininterruptamente. Pareciam araras. Meninos suado do baba, entravam aos berros, gritando por jogadas que nunca aconteceram e interrogando-me por não ter ido até a sala do lado, onde ocorrera a disputa. O que havia acontecido comigo? Em meio à confusão de palavras, ao choque, levantei-me pra buscar a minha carteira. Tudo isso sem desviar o olhar nem o pensamento daquele intervalo. Esperaria o outro dia de aula e seu intervalo, e faltaria mais uma vez ao baba na sala do lado. Dedicaria-me a outra atividade de agora por diante: a escritura. Onde achava que ia chegar?
A. Spínola
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