Vinte e três e quinze. Estamos em pleno inverno. A situação em torno de cada barraca que configura a feira está sob controle: lonas pretas, azuis, amarelas, tornaram-se apenas lonas escuras. Não conseguimos mais identificar as pessoas. Apenas vultos, ‘fantasmas’, movimentam-se debaixo dos chapéus. Um barulho de vidro se despedaçando quebra o silêncio da noite e revela um copo de cachaça no chão. De certo algum bêbado... Talvez um feirante, ou um vaqueiro, (quem sabe?) que se esqueceu da hora de ir para casa! Estava apegado com a vida pós-feira: ‘foia podre’, aboios, causos, e fadas! Hahahahaha! Fadas! Mulheres que sempre sabem como e a quem encantar! Encantou o sujeito desta noite. Fez com que ele se esquecesse do tempo, do cavalo, da casa, não da feira! Dela, mulher da feira! Fada! Encantadora. E que decote! Que quadril, que forró! Hummmm! Que momento para ver-se na hora de ir! Novo barulho de vidro quebrando, outro copo que caia – agora seguido de um grito e de uma correria! Não mais eram (apenas) as mãos de um bêbado que soltara um copo. Era um copo que caia por estar nas mãos de uma briga! Mãos que soltara um copo para segurar um facão! Enquanto do outro lado, uma faca tipo ‘peixeira’, 14 polegadas, cada vez mais era apertada pelo marido da fada! Ah! Esqueci de dizer que aqui perto da feira algumas fadas têm marido, ou amantes oficiais que se julgam no direito de tê-las quando quiserem e com exclusividade! Enquanto acontecia a disputa pela fada, esta se agarrava à cintura do seu escolhido naquele momento. No fundo sentia-se satisfeita por ser o motivo da luta entre faca e facão. Notava-se entre seus momentos de tensão um sorriso, uma mistura de vulgaridade e preciosidade! A faca passara perto do peito e o facão cruzara a linha do abdômen. Tripas caiam e o ex-dono aterrorizado tentava segurá-las! O sujeito da feira fugia e livrava-se da sua fada! Afastava as suas mãos e montava no cavalo misturando mais ainda à noite. Ele agora era somente um tropel. Um cavalgar que amenizava e desaparecia. Pena. Para o ex-dono. O sujeito do cavalo que desaparecera, cavalgava e por certo só pararia quando encontrasse um coito, um esconderijo, uma acolhida segura. Teria ido para casa?
Às vezes, nos dias de feira, acontecem problemas como este em plena luz do dia. O sol e algumas nuvens que teimam passar como se estivessem numa passarela para nuvens, tentando mostrar como seriam as próximas dos próximos invernos, ou como seriam as próximas nuvens das trovoadas que eram esperadas por todos os homens, mulheres e crianças que compunham a feira, eram as testemunhas de um crime. De mais um crime que acontecia. Não por uma disputa por fada, mas por um jogo, por um baralho que só roubava a uns, não aos outros; por dados mágicos que encantavam somente alguns olhos, não os outros. Ou por outros tipos de magia: acusações de roubos que nunca acontecera (fora outra pessoa!); lobisomens nas casas de farinha que assustavam mulheres e crianças e parecia ser um dos homens da feira; brincadeiras sobre burros, bodes, jegues, brigas de galo... Mas sempre motivos de uma boa discussão, ou de uma briga. Ainda noutro momento o movimento da feira assemelhava-se a uma serpente. Boiadas que cruzavam as ruas da feira, tropa que era puxada e atraiam olhares, vai-e-vem de vendedores de galinhas, ovos, caça moqueadas e de fadas! Também de crianças que brincavam de gude, pião e de futebol num campo pra lá de improvisado, onde carcaças de bois eram usadas como balizas de gol. A serpente caminhava, e pedaços da feira, ora uns mais que outros, pegavam fogo! Literalmente assados de carnes de boi, de carneiro, de bodes, ou frigideiras que cozinhavam mocotós, fatos, ou maxixes e quiabos, eram arrumados sobre fogões pré-históricos, as fogueiras, que eram mantidas acesas por mulheres rezadeiras, bruxas mantidas vivas nos tempos modernos, que receitavam banhas de carneiro para curar reumatismos, rezas para afastar mal-olhados, chás diversos para tosses, dores pelo corpo e sensações de enjôos. Quando o caso era mais delicado, aí só se tinha um jeito! Uma garrafada feita com a mistura de diversas ervas, e a banha do peixe-elétrico, trazida lá de um mundo bem distante! Não se teria mais problemas! Ainda tinham as receitas para aqueles casos de... hum... bem...fraquezas sexuais, digamos assim. Gemadas, catuabas, amendoim, ovos de codorna, mel, e... caldo de mocotó! Sim o mais perfeito, o mais eficaz já produzido para combater tal situação... errr... vexatória! Não havia um só registro de um sujeito que precisando, tomou o caldo e não teve seu problema resolvido. Teve até um daqueles considerados im-pos-sí-veis, que apenas foi acrescentado ao seu estado de necessidade, ovos de codornas. Foi uma apelação! Ovos de codorna e caldo de mocotó! Levantava por vinte e quatro horas o sujeito. E deixava qualquer fada ciente e satisfeita da sua escolha. Claro. Também quem duvidaria de uma mistura dessa? Teve até o caso de um rapaz que, vindo das bandas da praia, demorou de se engraçar pros lados da fadas! E era encanto prá lá, encanto prá cá... e nada! O sujeitinho não se abalava. Vai ver era porque tinha se acostumado a ver tantas dançarinas de forró nas praias, que ali as fadas não estavam conseguindo o ponto de aproximação.
Dona de uma barraca que vendia frigideiras e outras coisas mais, Fulana resolveu pegar de jeito o rapazote: convidou-o para tomar um caldo, misturado a uma cerveja e pequenas porções de ovos de codorna. O camarada começou a ficar sem jeito já que não conseguia controlar mais a situação. Estava pegando nos trinco, e as fadas... Ah! as fadas... pareciam cada vez mais deliciosas... agora era só aquela acertar o encanto e... pronto! Mais um freguês que sairia satisfeito e mais um marido ou amante-tirado-a-dono, que se dava mal... Reclamar do quê? Com quem? Somente uma solução: Faca versus facão. Facão versus peixeira. Porrete versus ferro de pendurar carne de boi – aquele que tanto se vê nos açougues, segurando quartos e mais quartos inteiros de uma vaca ou de um boi. E aí... sol e nuvens como testemunhas. Se fosse noite, lua e candeeiros acesos que sempre revelavam sombras poderiam testemunhar. Talvez uma estrela que passasse prestando atenção às coisas da Terra. Se não... mais um tropel de burros, ou de cavalos, sumiria se misturando à noite, a escuridão. Apenas mais um bucho furado esperando ser costurado, se houvesse tempo, ou transformando-se num pedaço de cadáver.
Os cavalos e burros e jegues, animais que também esperavam pelo pós-feira, eram animais sabidos. Encostavam-se numa árvore ou perambulavam pelas ruas da feira, quando conseguiam se soltar, e danavam a comer de tudo que encontravam. Mas sabiam que assim que fossem chamados para a volta – fosse ela sob calma, sob vexame ou sob gritos estridentes de confusão que havia – eles sempre saberiam o que fazer. Se tivessem com um bêbado no lombo, calmamente tomariam o caminho de casa e lá chegariam; Se tivessem com um necessitado de fuga, o puxar das rédeas revelaria uma pressa e o galope sairia com tanta naturalidade que faria confirmar o conhecimento que estes animais possuíam sobre a vida dos seus vaqueiros-donos: mais um ganhava estrada... mais um fugia e deixava para trás um rastro de sangue que nenhum destino conseguia apagar, rastro tecido a renda. Nós, de parcas que previam o acontecimento e tomavam partido, poupando a vida do fujão, aquele que fora escolhido há poucos instantes pela mulher-fada. No outro dia, todos teriam do que falar, ainda que fosse proibido revelar abertamente qual o partido, qual a versão que lhes parecia mais precisa, a mais próxima de uma verdade. Contariam casos. Sob luzes fracas de fifós, apenas contariam casos; revelariam detalhes que nem as parcas teceram. Movimentos de armas, de rédeas, de pulos, de cavalgadas e arremates finais, que apenas seus filhos e netos, ouvintes, ficariam sabendo. E um dia passariam para seus descendentes. E aquela noite pós-feira seria tornada mágica para aquele grupo, por aquele grupo que contava casos sob as luzes dos fifós.
Numa destas ocasiões, compadres e amigos, todos da parentalha, participariam da roda de caso. Avôs, netos, pais, filhos, compadres, afilhados, tios, sobrinhos, amigos... Todos os presentes, todos os ouvintes, todos contadores de detalhes dos casos. E eram tantos detalhes que, às vezes, uns casos se misturavam a outros, umas noites se misturavam a uns dias e ninguém mais, absolutamente ninguém mais, poderia recompor aquela história, se não estivesse ali, se não estivesse sob aquela luz, sob aquelas vozes, bebendo daquela cachaça, enquanto lançavam olhares para os céus, enquanto lançavam olhares para o mato, enquanto acendiam seus bodes e davam deliciosas baforadas ao vento, como se estivessem participando de um ritual sagrado, onde cada movimento fora estudado nos mínimos detalhes; cada movimento revelava o sujeito e sua participação na hierarquia daquele grupo. Às vezes, o grupo contava até com quem fora escolhido pelas fadas, ou quem fora marido traído, ou amante num dia de crimes, bucho furado, mas poupado da morte. E, quando este falava, quando contava a sua versão sobre o ocorrido, tudo à sua volta era silêncio total. Parecia que a magia do lugar, do ritual, transformava-o num uirapurú e todos precisavam apenas ouví-lo: saber do sujeito encantado, ou traído, como se dera o ocorrido, como tudo se sucedera. E ele ia revelar agora, naquele momento, para todos os presentes. Amém! Ninguém mais saberia.
Claro que o sujeito-uirapurú omitiria alguns detalhes do caso. Se fosse ele o encantado, o furador de bucho, jamais revelaria qual o compadre lhe dera acolhida naquela noite. Não poderia fazer isto. Apenas o compadre, um dia, sob outras luzes, sob outros candeeiros, poderia ritualizar o acontecido. Poderia dizer, enquanto acendia, enquanto fabricava mais um bode, detalhes do que ocorrera naquela noite pós-feira. O sujeito-uirapurú daquele momento seria o compadre da acolhida. Ele, que fora acolhido, jamais poderia revelar sobre seu compadre. Mas poderia dizer sobre o galope, sobre sua mágica mistura à noite e seu desaparecimento! Poderia dizer sobre seu facão, ou peixeira. Poderia revelar sobre gancho de carne, guardado como trunfo. Poderia falar sobre seus caminhos e sobre sua fada! Também somente ele falaria. Somente ele poderia ser dono de uma verdade naquele momento. Ninguém o desafiaria. Nem uma criança, menino-homem que ouvia o caso e poderia, na sua inocência, perguntar-lhe sobre algo que não escapara da mente brilhante de todos os meninos! Não, não poderia! Aprendera que o uirapurú poderia e deveria ser apenas ouvido. Ele já sabia disto. O destino lhe informara que, sendo sujeito daquele grupo, participante daquele ritual, estas perguntas que passavam na sua cabeça não poderiam de jeito algum, ser formuladas, interrompendo o sujeito-uirapurú. Ainda bem que aprendera, se não, poderia ser chamado para sair da roda do caso, da roda que insistia em revelar como seria a vida. Como poderia um dia começar, ou terminar a sua vida de adulto. Fadas chamar-no-iam para a iniciação (haviam percebido que já era hora). Por enquanto, menino, cala a boca! Apenas escuta, inspira-se, conversa contigo mesmo e com as estrelas do céu. Ninguém mais pode te ouvir, ninguém mais poderá aproxirmar-se ou ler ou seus pensamentos. Ou entrega seu destino aos oráculos do teu mundo, feiticeiras- caboclas, que rezam, dançam e fazem alguns ‘trabaios’. Só isso. E a revelação pode não te agradar. Cala, então.
Ainda ortodia, um fio de cumpade Miguel fez comentário sobre uns casos ouvidos numa roda. Pronto. Bastou! Era só isso que faltava. Imediatamente deu uma tremedeira no corpo... Começou a rodar que nem peru, cuspia fogo pela boca, rosnava, xingava a mãe, o pai... Pobre do compadre Miguel! Até que chamaram o Padre Frisco, que veio do estrangeiro, e fez uma reza daquelas brabíssimas e afastou a maldição! O menino saiu como se nada tivesse acontecido e esquecidinho de tudo! Nunca mais tocou no assunto da roda do uirapurú, nem foi permitido participar das rodas à noite nas beiras das fogueiras, ou sob as luzes do fifó.
Numa noite de lua cheia, daquelas em que se fala de lobisomens e outros seres misteriosos que povoam as cabeças dos moradores da região, um grupo da comunidade saía para pescar quando foi informado da presença do bicho-da-maré lá pras bandas da curva do rio, perto das jabuticabeiras, encostado no cercado dos pés de goiabas. Estava ferocíssimo e já havia rasgado três redes de pescadores que pensaram em fisgá-lo. Iludidos. Pobres pescadores. Para pescar um bicho destes, ou pelo menos afastá-lo da comunidade, era preciso um homem mais conhecedor das magias da localidade. Das manhas e artimanhas do berço do rio... E o Senhor da Canoa estava pronto: Ia pegar o barco, suas redes mágicas, seu facão – não poderia esquecer-se do facão. Sempre ajudava-o nos momentos mais difíceis. Diante da onça, diante da assombração, diante da serpente venenosa da caverna sem fundo... Onde estava o Senhor da Canoa, estava o facão. E o bicho-da-maré sairia dali de qualquer maneira! O velho remava devagar... Também fumava seu bode e remava como se estivesse no meio da Via-Láctea, no meio das estrelas... Não deixava marcas por onde passava. Ninguém que não o visse, saberia que passou por ali. Largou o bode ao se aproximar da curva... Puxou a rede e começou a alisá-la. Parecia conversar com os fios... Com os nós... Parecia conhecer cada pedaço que se unia ao outro, e poderia passar por louco, ora! Conversar com uma rede?!? Quem faria isso? Na verdade, não era uma conversa... Não. Talvez não tivéssemos olhado direito. Ele de forma alguma estaria conversando com a rede. Estava rezando-a, estava benzendo-a! Precisava de uma reza, de uma oração para enfrentar tamanho adversário. Não poderia ser apenas com uma rede daquelas que se pegaria o bicho-da-maré . Daquelas se pegava traíra! Peixe pequeno. Um monstro precisaria de muito mais!!! Então tá. Era na entrada da curva. Já dava para ouvir os movimentos do bicho, sua respiração quando subia à superfície e se parecia com um baita peixe estranho! Precisava jogar a rede e acertar de primeira. Não poderia errar. Faltava pouco... era só esperar o bicho subir. Faltava pouquíssimo. Pronto. Lá vinha ele. Parecia vir com muita velocidade. Parecia saber que algo lhe esperava. Subia aterrorizantemente. Mal tocou a superfície e a rede foi lançada. Parecia ter vida. Saia das mãos do Senhor e parecia ganhar personalidade. Primeiro era só um bolo, agora ia se metamorfoseando. Lembrava uma borboleta... Agora uma arraia, um morcego gigante, um cogumelo que caía... pronto! Bem na fronte do bicho-da-maré ! Acabaria ali os temores da comunidade, o medo dos meninos que iam banhar-se no rio, o pavor dos sonhos à madrugada... Acabariam muitos sofrimentos de famílias que não viram seus filhos voltarem depois de uma pescaria. Era só esperar que a rede mágica, enfeitiçada pelo Senhor fizesse a sua parte. Enquanto isso ele suava. Apenas isto demonstrava que era humano, demasiado humano. Apenas este suor que lhe escorria pelo rosto, em plena noite de lua, fazia saber quem era aquele Senhor das águas. Não esperava nada mais. Apenas o destino da rede. Veio a surpresa. O monstro rasgara a rede. Rasgara a rede, as rezas, as magias, e dirigia-se para aquela canoa de onde havia partido o arremesso. Só não sabia o animal que este movimento era esperado. A rede fizera sim a sua parte. Tocara-o. Fizera-o menos invencível, menos inatingível pelo mais temível dos golpes do Senhor da Canoa, que nunca abandonara seu destino: Da sua mão direita partira o facão numa velocidade estonteante. Partira e rasgara a sua pele, o seu couro, a sua vida... Partira o bicho-da-maré e uma corda era o que precisava para arrastá-lo até a canoa e levá-lo até a comunidade. Daria carne para muitos dias, para várias pessoas. E poderiam preparar seus barcos, suas próximas partidas, suas pescarias, pois dispunham do alimento. Festejariam. Bebida, fogueira, rodas de conversa, casos, e peixe frito. Aliás, bicho-da-maré frito. E risadas, desejos, encantos meninos, e fadas! Que esperariam o momento certo para mais uma investida. Quem seria acertado pelos seus encantos? (...)
Às vezes, nos dias de feira, acontecem problemas como este em plena luz do dia. O sol e algumas nuvens que teimam passar como se estivessem numa passarela para nuvens, tentando mostrar como seriam as próximas dos próximos invernos, ou como seriam as próximas nuvens das trovoadas que eram esperadas por todos os homens, mulheres e crianças que compunham a feira, eram as testemunhas de um crime. De mais um crime que acontecia. Não por uma disputa por fada, mas por um jogo, por um baralho que só roubava a uns, não aos outros; por dados mágicos que encantavam somente alguns olhos, não os outros. Ou por outros tipos de magia: acusações de roubos que nunca acontecera (fora outra pessoa!); lobisomens nas casas de farinha que assustavam mulheres e crianças e parecia ser um dos homens da feira; brincadeiras sobre burros, bodes, jegues, brigas de galo... Mas sempre motivos de uma boa discussão, ou de uma briga. Ainda noutro momento o movimento da feira assemelhava-se a uma serpente. Boiadas que cruzavam as ruas da feira, tropa que era puxada e atraiam olhares, vai-e-vem de vendedores de galinhas, ovos, caça moqueadas e de fadas! Também de crianças que brincavam de gude, pião e de futebol num campo pra lá de improvisado, onde carcaças de bois eram usadas como balizas de gol. A serpente caminhava, e pedaços da feira, ora uns mais que outros, pegavam fogo! Literalmente assados de carnes de boi, de carneiro, de bodes, ou frigideiras que cozinhavam mocotós, fatos, ou maxixes e quiabos, eram arrumados sobre fogões pré-históricos, as fogueiras, que eram mantidas acesas por mulheres rezadeiras, bruxas mantidas vivas nos tempos modernos, que receitavam banhas de carneiro para curar reumatismos, rezas para afastar mal-olhados, chás diversos para tosses, dores pelo corpo e sensações de enjôos. Quando o caso era mais delicado, aí só se tinha um jeito! Uma garrafada feita com a mistura de diversas ervas, e a banha do peixe-elétrico, trazida lá de um mundo bem distante! Não se teria mais problemas! Ainda tinham as receitas para aqueles casos de... hum... bem...fraquezas sexuais, digamos assim. Gemadas, catuabas, amendoim, ovos de codorna, mel, e... caldo de mocotó! Sim o mais perfeito, o mais eficaz já produzido para combater tal situação... errr... vexatória! Não havia um só registro de um sujeito que precisando, tomou o caldo e não teve seu problema resolvido. Teve até um daqueles considerados im-pos-sí-veis, que apenas foi acrescentado ao seu estado de necessidade, ovos de codornas. Foi uma apelação! Ovos de codorna e caldo de mocotó! Levantava por vinte e quatro horas o sujeito. E deixava qualquer fada ciente e satisfeita da sua escolha. Claro. Também quem duvidaria de uma mistura dessa? Teve até o caso de um rapaz que, vindo das bandas da praia, demorou de se engraçar pros lados da fadas! E era encanto prá lá, encanto prá cá... e nada! O sujeitinho não se abalava. Vai ver era porque tinha se acostumado a ver tantas dançarinas de forró nas praias, que ali as fadas não estavam conseguindo o ponto de aproximação.
Dona de uma barraca que vendia frigideiras e outras coisas mais, Fulana resolveu pegar de jeito o rapazote: convidou-o para tomar um caldo, misturado a uma cerveja e pequenas porções de ovos de codorna. O camarada começou a ficar sem jeito já que não conseguia controlar mais a situação. Estava pegando nos trinco, e as fadas... Ah! as fadas... pareciam cada vez mais deliciosas... agora era só aquela acertar o encanto e... pronto! Mais um freguês que sairia satisfeito e mais um marido ou amante-tirado-a-dono, que se dava mal... Reclamar do quê? Com quem? Somente uma solução: Faca versus facão. Facão versus peixeira. Porrete versus ferro de pendurar carne de boi – aquele que tanto se vê nos açougues, segurando quartos e mais quartos inteiros de uma vaca ou de um boi. E aí... sol e nuvens como testemunhas. Se fosse noite, lua e candeeiros acesos que sempre revelavam sombras poderiam testemunhar. Talvez uma estrela que passasse prestando atenção às coisas da Terra. Se não... mais um tropel de burros, ou de cavalos, sumiria se misturando à noite, a escuridão. Apenas mais um bucho furado esperando ser costurado, se houvesse tempo, ou transformando-se num pedaço de cadáver.
Os cavalos e burros e jegues, animais que também esperavam pelo pós-feira, eram animais sabidos. Encostavam-se numa árvore ou perambulavam pelas ruas da feira, quando conseguiam se soltar, e danavam a comer de tudo que encontravam. Mas sabiam que assim que fossem chamados para a volta – fosse ela sob calma, sob vexame ou sob gritos estridentes de confusão que havia – eles sempre saberiam o que fazer. Se tivessem com um bêbado no lombo, calmamente tomariam o caminho de casa e lá chegariam; Se tivessem com um necessitado de fuga, o puxar das rédeas revelaria uma pressa e o galope sairia com tanta naturalidade que faria confirmar o conhecimento que estes animais possuíam sobre a vida dos seus vaqueiros-donos: mais um ganhava estrada... mais um fugia e deixava para trás um rastro de sangue que nenhum destino conseguia apagar, rastro tecido a renda. Nós, de parcas que previam o acontecimento e tomavam partido, poupando a vida do fujão, aquele que fora escolhido há poucos instantes pela mulher-fada. No outro dia, todos teriam do que falar, ainda que fosse proibido revelar abertamente qual o partido, qual a versão que lhes parecia mais precisa, a mais próxima de uma verdade. Contariam casos. Sob luzes fracas de fifós, apenas contariam casos; revelariam detalhes que nem as parcas teceram. Movimentos de armas, de rédeas, de pulos, de cavalgadas e arremates finais, que apenas seus filhos e netos, ouvintes, ficariam sabendo. E um dia passariam para seus descendentes. E aquela noite pós-feira seria tornada mágica para aquele grupo, por aquele grupo que contava casos sob as luzes dos fifós.
Numa destas ocasiões, compadres e amigos, todos da parentalha, participariam da roda de caso. Avôs, netos, pais, filhos, compadres, afilhados, tios, sobrinhos, amigos... Todos os presentes, todos os ouvintes, todos contadores de detalhes dos casos. E eram tantos detalhes que, às vezes, uns casos se misturavam a outros, umas noites se misturavam a uns dias e ninguém mais, absolutamente ninguém mais, poderia recompor aquela história, se não estivesse ali, se não estivesse sob aquela luz, sob aquelas vozes, bebendo daquela cachaça, enquanto lançavam olhares para os céus, enquanto lançavam olhares para o mato, enquanto acendiam seus bodes e davam deliciosas baforadas ao vento, como se estivessem participando de um ritual sagrado, onde cada movimento fora estudado nos mínimos detalhes; cada movimento revelava o sujeito e sua participação na hierarquia daquele grupo. Às vezes, o grupo contava até com quem fora escolhido pelas fadas, ou quem fora marido traído, ou amante num dia de crimes, bucho furado, mas poupado da morte. E, quando este falava, quando contava a sua versão sobre o ocorrido, tudo à sua volta era silêncio total. Parecia que a magia do lugar, do ritual, transformava-o num uirapurú e todos precisavam apenas ouví-lo: saber do sujeito encantado, ou traído, como se dera o ocorrido, como tudo se sucedera. E ele ia revelar agora, naquele momento, para todos os presentes. Amém! Ninguém mais saberia.
Claro que o sujeito-uirapurú omitiria alguns detalhes do caso. Se fosse ele o encantado, o furador de bucho, jamais revelaria qual o compadre lhe dera acolhida naquela noite. Não poderia fazer isto. Apenas o compadre, um dia, sob outras luzes, sob outros candeeiros, poderia ritualizar o acontecido. Poderia dizer, enquanto acendia, enquanto fabricava mais um bode, detalhes do que ocorrera naquela noite pós-feira. O sujeito-uirapurú daquele momento seria o compadre da acolhida. Ele, que fora acolhido, jamais poderia revelar sobre seu compadre. Mas poderia dizer sobre o galope, sobre sua mágica mistura à noite e seu desaparecimento! Poderia dizer sobre seu facão, ou peixeira. Poderia revelar sobre gancho de carne, guardado como trunfo. Poderia falar sobre seus caminhos e sobre sua fada! Também somente ele falaria. Somente ele poderia ser dono de uma verdade naquele momento. Ninguém o desafiaria. Nem uma criança, menino-homem que ouvia o caso e poderia, na sua inocência, perguntar-lhe sobre algo que não escapara da mente brilhante de todos os meninos! Não, não poderia! Aprendera que o uirapurú poderia e deveria ser apenas ouvido. Ele já sabia disto. O destino lhe informara que, sendo sujeito daquele grupo, participante daquele ritual, estas perguntas que passavam na sua cabeça não poderiam de jeito algum, ser formuladas, interrompendo o sujeito-uirapurú. Ainda bem que aprendera, se não, poderia ser chamado para sair da roda do caso, da roda que insistia em revelar como seria a vida. Como poderia um dia começar, ou terminar a sua vida de adulto. Fadas chamar-no-iam para a iniciação (haviam percebido que já era hora). Por enquanto, menino, cala a boca! Apenas escuta, inspira-se, conversa contigo mesmo e com as estrelas do céu. Ninguém mais pode te ouvir, ninguém mais poderá aproxirmar-se ou ler ou seus pensamentos. Ou entrega seu destino aos oráculos do teu mundo, feiticeiras- caboclas, que rezam, dançam e fazem alguns ‘trabaios’. Só isso. E a revelação pode não te agradar. Cala, então.
Ainda ortodia, um fio de cumpade Miguel fez comentário sobre uns casos ouvidos numa roda. Pronto. Bastou! Era só isso que faltava. Imediatamente deu uma tremedeira no corpo... Começou a rodar que nem peru, cuspia fogo pela boca, rosnava, xingava a mãe, o pai... Pobre do compadre Miguel! Até que chamaram o Padre Frisco, que veio do estrangeiro, e fez uma reza daquelas brabíssimas e afastou a maldição! O menino saiu como se nada tivesse acontecido e esquecidinho de tudo! Nunca mais tocou no assunto da roda do uirapurú, nem foi permitido participar das rodas à noite nas beiras das fogueiras, ou sob as luzes do fifó.
Numa noite de lua cheia, daquelas em que se fala de lobisomens e outros seres misteriosos que povoam as cabeças dos moradores da região, um grupo da comunidade saía para pescar quando foi informado da presença do bicho-da-maré lá pras bandas da curva do rio, perto das jabuticabeiras, encostado no cercado dos pés de goiabas. Estava ferocíssimo e já havia rasgado três redes de pescadores que pensaram em fisgá-lo. Iludidos. Pobres pescadores. Para pescar um bicho destes, ou pelo menos afastá-lo da comunidade, era preciso um homem mais conhecedor das magias da localidade. Das manhas e artimanhas do berço do rio... E o Senhor da Canoa estava pronto: Ia pegar o barco, suas redes mágicas, seu facão – não poderia esquecer-se do facão. Sempre ajudava-o nos momentos mais difíceis. Diante da onça, diante da assombração, diante da serpente venenosa da caverna sem fundo... Onde estava o Senhor da Canoa, estava o facão. E o bicho-da-maré sairia dali de qualquer maneira! O velho remava devagar... Também fumava seu bode e remava como se estivesse no meio da Via-Láctea, no meio das estrelas... Não deixava marcas por onde passava. Ninguém que não o visse, saberia que passou por ali. Largou o bode ao se aproximar da curva... Puxou a rede e começou a alisá-la. Parecia conversar com os fios... Com os nós... Parecia conhecer cada pedaço que se unia ao outro, e poderia passar por louco, ora! Conversar com uma rede?!? Quem faria isso? Na verdade, não era uma conversa... Não. Talvez não tivéssemos olhado direito. Ele de forma alguma estaria conversando com a rede. Estava rezando-a, estava benzendo-a! Precisava de uma reza, de uma oração para enfrentar tamanho adversário. Não poderia ser apenas com uma rede daquelas que se pegaria o bicho-da-maré . Daquelas se pegava traíra! Peixe pequeno. Um monstro precisaria de muito mais!!! Então tá. Era na entrada da curva. Já dava para ouvir os movimentos do bicho, sua respiração quando subia à superfície e se parecia com um baita peixe estranho! Precisava jogar a rede e acertar de primeira. Não poderia errar. Faltava pouco... era só esperar o bicho subir. Faltava pouquíssimo. Pronto. Lá vinha ele. Parecia vir com muita velocidade. Parecia saber que algo lhe esperava. Subia aterrorizantemente. Mal tocou a superfície e a rede foi lançada. Parecia ter vida. Saia das mãos do Senhor e parecia ganhar personalidade. Primeiro era só um bolo, agora ia se metamorfoseando. Lembrava uma borboleta... Agora uma arraia, um morcego gigante, um cogumelo que caía... pronto! Bem na fronte do bicho-da-maré ! Acabaria ali os temores da comunidade, o medo dos meninos que iam banhar-se no rio, o pavor dos sonhos à madrugada... Acabariam muitos sofrimentos de famílias que não viram seus filhos voltarem depois de uma pescaria. Era só esperar que a rede mágica, enfeitiçada pelo Senhor fizesse a sua parte. Enquanto isso ele suava. Apenas isto demonstrava que era humano, demasiado humano. Apenas este suor que lhe escorria pelo rosto, em plena noite de lua, fazia saber quem era aquele Senhor das águas. Não esperava nada mais. Apenas o destino da rede. Veio a surpresa. O monstro rasgara a rede. Rasgara a rede, as rezas, as magias, e dirigia-se para aquela canoa de onde havia partido o arremesso. Só não sabia o animal que este movimento era esperado. A rede fizera sim a sua parte. Tocara-o. Fizera-o menos invencível, menos inatingível pelo mais temível dos golpes do Senhor da Canoa, que nunca abandonara seu destino: Da sua mão direita partira o facão numa velocidade estonteante. Partira e rasgara a sua pele, o seu couro, a sua vida... Partira o bicho-da-maré e uma corda era o que precisava para arrastá-lo até a canoa e levá-lo até a comunidade. Daria carne para muitos dias, para várias pessoas. E poderiam preparar seus barcos, suas próximas partidas, suas pescarias, pois dispunham do alimento. Festejariam. Bebida, fogueira, rodas de conversa, casos, e peixe frito. Aliás, bicho-da-maré frito. E risadas, desejos, encantos meninos, e fadas! Que esperariam o momento certo para mais uma investida. Quem seria acertado pelos seus encantos? (...)
5 comentários:
Augusto, querido, um 2009 ma-ra-vi-lho-so para você. Pena que nunca mais a gente conseguiu reunir a turma, não é? Quem sabe esse ano? Muita poesia na sua vida: só ela salva o mundo. Beijos.
Obrigado, Anne!Bjs!!!
(O que achou do texto?)
Excelente prosa, Augusto. Irretocável. É uma pena que fique restrito ao espaço do blog. Existem projetos de publicação na cidade (acho que na CDL e no Museu de Arte Contemporânea). Vc já pensou em participar de um deles????
Também acredito no poder das “fadas”. Perto delas, homens são apenas homens. A vida em determinados lugares onde as emoções são mais facilmente sentidas, e as tradições mais marcantes, e os costumes mais ásperos e fortes, turbilhão de coisas acontecem sem que ninguém de lugar distinto imagine. Homem é sujeito-uirapurú, mulher é guerreira e criança é mesmo criança. A sabedoria é pra poucos. Os mais velhos são os respeitados... Já ouvi histórias fantásticas. Os filhos e netos do mundo “diferente” adoram. Não sei se essa é fruto de uma realidade.. ou de uma realidade imaginária. Sei que o autor é muito bom. Agarrou-me com as palvras e a história. Falou do sujeito uirapuru e incorporou o tal. Contador de história... um ator, um artista.
Juliana, você me encabula e encanta! Belas palavras, adorei seu comentário. Firme, seguro, sincero... Você. Bjs!
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