Estudar a literatura de folheto é aproximar-se de um mundo onde se confunde palavra escrita e palavra falada. Fui apresentado à Literatura de Cordel na década de 1970. Uma irmã lia durante as tardes, títulos como: “A filha que xingou a mãe e virou cavala”; “Os cabras de Lampião”; “A peleja do cego Aderaldo com o Zé Pretinho”. Nessas tardes éramos obrigados a ir descansar, por ordem do meu pai. Um castigo que sofríamos por algo que tivéssemos feito, talvez por algo que viéssemos a fazer.
De qualquer maneira, nos restava como consolo saber que dormir depois do almoço era herança de avós e bisavós, que continuava sertão adentro lá pelas nossas bandas, na pequena vila de Pé de Serra, no nordeste da Bahia. O costume viera da Europa, com portugueses espanhóis e italianos e foi nos atingir lá, num micro mundo brasileiro de tão poucas pessoas, que chegávamos a nos (re) conhecer pelo assobio que ouvíamos nos longos silêncios das tardes. Silêncio quebrado por passos nas ruas, gritos, cantos de pássaros, aboios – registrando a passagem de mais uma boiada – ou choros, sinal de castigos por alguma desobediência.
Ainda na década de 1970, vim morar em Feira de Santana. Que cidade enorme! Vim para estudar no Colégio Santanópolis, que se acreditava ser o melhor da cidade. Ainda não havia sido apresentado, pelos professores da escola, à Área de Ciências Humanas, mas ouvia as histórias dos cordéis e casos que faziam parte das conversas das noites lá na roça, quando os mais velhos falavam sobre enchentes, chacinas e assombrações que não me deixavam dormir direito.
No colégio Santanópolis, atraente era o laboratório de química, que, além de cheio de tubos, chamava a nossa atenção por possuir um feto de três meses, o que, além da aula, nos fazia pensar sobre sermos cientistas. Nos dias de sábados e segundas, a feira armada na Avenida Getúlio Vargas, prendia a atenção de todos. Em frente ao colégio, o que se comercializava eram os cordéis, da mesma forma como encontramos nas referências sobre suas origens: um barbante com livretos pendurados e rumas amontoadas sobre um plástico! Os vendedores liam muitas histórias para despertar a curiosidade e estimular a venda dos folhetos. Eu assistia as narrativas como um espectador, ouvindo-as ao mesmo tempo em que aconteciam aulas de Matemática, de Português, de Geometria, ou História. Aquela aula que, no colégio, desconhecia ou desprezava as histórias narradas e conhecidas do lado de fora. Mas era necessário entrar e cumprir o ritual: escola, aula, colegas, professores e perguntas. Na minha cabeça, uma inquietação: o que acontecera à princesa que estava para ser devorada pelo dragão? Como terminaria a história deste folheto?
Naquele período não fazia a menor idéia dos estudos sobre tradição, oralidade, história, cultura e história social que aconteciam mundo afora e de que eu fazia parte, daquele meu jeito, sujeito, “fazedor de história”, ouvindo casos sobre pactos com o demônio, sobre pedras preciosas, sobre escravos, bandidos, cangaceiros, veiculados pelos folhetos de cordel. Quanta diferença da história produzida e ensinada na sala de aula, daquela que vivenciava como fazedor de história, menino da roça, de infância vivida entre serras do sertão e entre “pilhas” de gente da Feira de Santana.
Mas a década de 1970 se foi e quase me separou do cordel. Talvez o que ainda me mantivesse preso a esse tipo de literatura, tão presa a tradições orais, fossem os casos, as conversas na frente da casa à noitinha. Destes não me separei.
Não me separei dos casos da roça, nem da vontade de falar sobre aquele mundo que se preparava de terça-feira a domingo, para ir à Feira, no dia de segunda. Na verdade, o principal meio de transporte, um pau-de-arara – (denominação muito usada no interior do Nordeste, quando nos referíamos aos caminhões que transportavam pessoas de um lugar para outro, pelo fato dos viajantes, “araras”, se sentarem em tábuas que atravessavam a carroceria do caminhão, daí o termo, pau-de-arara.) - partia domingo à tarde e chegava à noite.
Para passar o tempo, contávamos os jegues que víamos nas margens da estrada. Meu avô – de quem trago enormes lembranças e muitas lições sobre tropas, agricultura e lojas, (ainda que tenha morrido quando eu tinha onze anos), era comerciante e negociava ouro com os poderosos da Feira de Santana. Enquanto criança, ouvia seus casos de viagens a cavalo, trazendo ouro ou gado, em percursos de três ou quatro dias, da roça para Feira de Santana. Quem sabe foi nesse percurso, quando ouvia casos sobre Lucas da Feira, que tive despertada, ainda em criança, a vontade de buscar conhecer aquele que assaltava os boiadeiros[1], os negociantes de fumo e de ouro, que viajavam pelas estradas de Feira.
Mais tarde, na Universidade Estadual de Feira de Santana, surgiu a possibilidade de lidar com esta produção cultural. Eis-me historiador, no papel de transformar em produção científica, os casos ouvidos, que revelavam uma significativa parte da cultura daquela comunidade.
É certo que este texto, ou melhor, a idéia para esta produção, é fruto dessas rodas de casos, nas quais eu ouvia com atenção o que se falava sobre Lucas. Cada caso, cada memória, revelavam um novo sujeito. Não eram novas memórias sobre Lucas, mas novos Lucas que surgiam após cada episódio, após cada caso contado...
[1] POPPINO, Rollie E. Feira de Santana. [Tradução Arquimedes Pereira Guimarães]. Salvador: Itapuã, 1968. 328 p. (Baiana).
Um comentário:
Augusto, esse último texto postado é muito bom...Pelo menos para mim que adoro ouvir e ler causos, não que o seu seja um desses...risos. O interessante é a riqueza da (s) sua (s) memória (s), podendo ser utilizada, inclusive, como fonte de informações para trabalhos "acadêmicos/científicos". Livia Dias
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