As feiras de Feira de Santana
É fato que já sabemos muitas
coisas a respeito da história de Feira de Santana.
Muitas coisas?
Qualquer iniciante no assunto
logo conquistas preciosas informações sobre a fazenda Sannta Anna dos Olhos
d’Água que, segundo a lenda, dará origem ao povoado de Santana
da Feira.
Associa-se Feira de Santana a um
passado remoto de certa atividade agrícola e de criação de gado, seguindo de um
momento de feira livre, comércio de gado e passagem para vida urbana. Não
sabemos dizer ao certo o que vai prevalecer na genética da cidade do final do
século XIX até os dias atuais. Se, por uma raiz mais urbana, será a crescente
atividade comercial – aumento do número de lojas de tecidos, de bares, de farmácias,
de boutiques, de joalherias, de lojas de instrumentos musicais, de lojas de artigos
importados – ou quase isso – ou a referência rural, aquela da feira livre, de
negócios de gado, de compra e venda de peles, de mingaus, de beijús, de
vendedor ambulante de frutas e verduras, de milho cozido, de literatura de
cordel, de aboios, de reverências ao vaqueiro, ao tropeiro, ao cheiro de batata
doce, de tripa, de fatada, de mocofato, de pirão de leite com carne do sol, de
ovos fritos, de cuscuz e por aí vai...
Deveríamos começar a contar a
história de Feira de Santana pela Expofeira. Lá do parque de exposição na BR-324.
Ali se intensifica, ainda que uma vez ao ano, a negociação de boa parte daquilo
que fora a feira do gado. A Expofeira é um momento novo do campo do gado.
Aquele de um só dia para depois sumir, desaparecer. Uma cinderela do gado.
Arruma-se, fica pronta e depois de uma semana, desaparece, deixando apenas um
rastro dos negócios que realizou... Um cheiro do gado que esteve ali, um zumbido
dos shows realizados... Um murmúrio de todo o povo que andou pela exposição
agropecuária: povo que vendeu, que comprou, que montou, que se divertiu, que trabalhou...
Ali seria um ponto no presente para uma partida em direção ao passado. Como
tudo aquilo teria começado?
Saímos da Expofeira e paramos
rapidamente no viaduto do 35º B.I. do Exército Brasileiro. Está escrito: Portal do Sertão. Porta do
sertão. Entrada para o sertão.
Significa: o clima vai mudar, a vegetação vai mudar, a brisa, a chuva ou
chuvisco que nos acompanhavam vindos do litoral, da direção da capital, da baía
famosa que deu nome ao estado, vai nos deixar a sós com um calor quase
insuportável, com a fervura do sol da manhã e o inferno do sol da tarde. Cada
passo dado na direção do norte significa ainda mais termos o sol como
companheiro. Ter escassas nuvens passando por nós como deboche, como pirraça.
Dificilmente se jogarão neste solo. Rumamos da entrada do sertão até chegarmos
ao Feiraguai – hoje um centro comercial que engloba lojas de discos, de
eletrodomésticos, de roupas, de perucas, de uma quantidade absurda de produto e
mercadorias – e a Feira do Rato (espaço de compra e venda de veículos de todas
as espécies, ainda daquela forma direta, comprador-vendedor, ou no máximo com
um agilizador do negócio que ganha um percentual de cada lado e vai vivendo a
vida). Até alguns anos atrás, ali fora a Estação Ferroviária de Feira de
Santana – da Cia. Chemins de Fer
Federaux du L'Est Brésilien – inaugurada no dia dois de dezembro de 1876. O
trecho entre Cachoeira e Feira de Santana foi o primeiro trecho aberto pela E.
F. Central da Bahia, no ano de 1876. Em 1942, com a remodelação geral das
linhas da região, o trecho entre Conceição de Feira e Feira de Santana passou a
ser um ramal, que foi extinto oficialmente em 16/05/1975, mas que não operava,
pelo menos com passageiros, desde 1964. Da calçada da Igreja
dava para ver o trem se aproximar, escutar seu apito, abraçar-se em despedida,
ou esfregar as mãos em sinal de agonia, de expectativa por quem vai chegar. Com
certeza, passageiros ilustres e importantes trabalhadores pegaram o trem
e voltaram pros braços de familiares. Ou fizeram uma viagem de volta até
Cachoeira. A estação era um espaço próximo a Igreja da Matriz ali bem ao lado
da Praça padre Ovídio e da Santa Casa de Misericórdia.
Quando Feira de Santana vai
serpenteando esta região, ela cresce na direção da Rua Conselheiro Franco – ladeada
pela Rua Marechal Deodoro da Fonseca. Este espaço se torna nosso terceiro ponto
de estudo. As duas deixam rapidamente de serem ruas residenciais para se
transformarem em importantes centros comerciais da cidade. Lojas e galerias vão
surgindo, entrecortadas por cafés e bares. Comércio de eletrodoméstico, de fazenda (aqui
no sentido de tecido), de ervas, de panelas e outras quinquilharias. Era forte
até porque caminhava em direção a bem frequentada feira livre da Avenida Getúlio
Vargas. Aqui fazemos duas importantes
observações: a primeira sobre a feira livre. Esta feira é aquela muitas vezes
apontada como responsável pelo desenvolvimento desta cidade. Crescia da altura
do cruzamento da Rua J.J. Seabra com a Avenida Getúlio Vargas, até chegar a altura da Rua Conselheiro
Franco, não sem antes cuspir pedaços de feira por toda Avenida Senhor dos
Passos, Rua Marechal Deodoro, Sales Barbosa, tendo como ponto nervoso o mercado
de carnes e farinha e a Praça da Bandeira. Os vaqueiros e agricultores chegavam
em cavalos e/ou carroças e deixavam seus meios de transportes amarrados nesta
praça. Pessoas que caminhavam freneticamente em várias direções, na certa
procurando fumo, cachaça, gado, querosene, sal, ou fregueses para suas
mercadorias. Esta feira existiu até o ano de 1977.
Nesta ocasião chega o momento da
feira livre ser transferida para o Centro de Abastecimento (quarta parada
de estudos), perto do Tanque da Nação, atrás da Santa Casa, numa tentativa de
tirá-la do centro da cidade. Mas o Beco do Mocó e a Rua Marechal - e toda a
calçada desta rua - se incumbiram de dizer que a feira não sairia assim. Se fora
desmontada, tirada à força da Avenida Getúlio Vargas e Praça da Bandeira, das
imediações da esquina com a Avenida Senhor dos Passos, ela se montaria sobre
pedaços de panos organizados nos passeios das ruas, sobre cavaletes
estruturados nos becos da Rua Marechal, no meio do Beco do Mocó, no Beco da
Energia, até chegar de volta a rua (como
muitas vezes nos referimos ao centro das cidade). Fazendo com que a urbis trave ali, principalmente nas
segundas-feiras, antigo dia da exposição da feira livre. O povo não cedeu ao
fato de ser empurrado para o Centro de Abastecimento e empurrou a feira livre
de volta para o centro da cidade. Até se juntar ao Mercado de Artes, hoje
centro de comércio artesanal, antigo mercado de carnes e farinhas. Só que agora
a feira veio pelo outro lado, vinda da Praça do Lambe Lambe na Avenida Senhor
dos Passos. Neste praça alcançou metade da rua, espremendo carros e gente que
disputam os poucos espaços entre barracas de goiabas, de mamão, de laranja e
tangerina, barracas de farinha de goma, e de beijús, de quiabo, maxixe e acerola.
Muito para se pesquisar nesta área. Falar da Praça do Lambe Lambe e dos seus
condenados trabalhadores. Dos fotógrafos que desafiam o tempo e resistem,
fazendo retratos em três por quatro, como se fossem a única solução para
desinformados frequentadores do lugar. Tecem fotografias como se estivessem no
início do século XX, artesanalmente, um ou outro agora com a câmera digital,
responsável direta pelo fim de uma profissão da cidade: do fotógrafo do lambe
lambe.
Voltamos ao Centro
de Abastecimento: O espaço construído para abrigar a antiga feira livre. Mais que social, obra de
viés essencialmente político, responsável pela destruição do mais importante
ponto de atração turística da cidade, a feira livre. A maior feira livre
montada no Brasil. Ainda hoje, o Centro de Abastecimento é um palco mal
estruturado, onde os atores resistem em frequentar, onde vender e comprar
encontra resistência na falta de higiene, na desorganização total do espaço, na
falta de preparo para os dias de chuva, para a carga e descarga de mercadorias
que ainda chegam de muitos lugares. Afinal Feira de Santana é uma região
metropolitana e graças a estas mercadorias que insistem em serem
comercializadas em lugar tão inadequado, várias cidades desenvolvem suas
próprias feiras, montam e desmontam vidas, expectativas, sonhos, vivências de
um povo... Partimos para outro ponto de grande história: o campo do gado.
O Campo do Gado entra nessa
sessão de estudos como várias particularidades. Guarda a característica de
estar sempre afastado do núcleo urbano e de ter um comércio nos moldes do que
já foi um dia, onde vaqueiros-vendedores montam seus burros e cavalos para
mostrá-los para venda, onde vaqueiros-compradores observam encostados na cerca,
procurando notar um defeito na pata, no galope, nas vistas... A cena é
modificada pela chegada de um barulhento caminhão de bois, não mais pelo aboio
de outro vaqueiro. Chega carregado de gado pé duro, dependendo de onde vem
gordo, e pronto para venda. Ao redor deste espaço de comércio, alguns boxes de
artesão ferreiros, de produtores de utilidades de couro – selas, tacas,
arreios, jalecos... Um restaurante que serve carne cozida (ensopado), e galinha ao molho pardo, acompanhada de feijão,
farinha e pimenta.
Estudar Feira de Santana...
Voltar do novo Campo do Gado para o antigo. Encontrar neste espaço o Shopping
Boullevard, o Ville Gourmet, entrar e se deparar com prédios antigos escondidos
pelos novos restaurantes, novas pizzarias, e por campos de futebol. Olhar e se
deparar com Glauber Rocha encostado no curral, filmando Deus e o Diabo na Terra
do Sol. A cena do vaqueiro roubado e maltratado que se volta contra o
fazendeiro.
Caminhar mais um pouco e chegar
até a feirinha. A Estação Nova. Por que nova? Por que substituiu a velha,
aquela das proximidades da Matriz. E que deu nome a feira livre atual na
Avenida João Durval Carneiro. Mas que também não mais existe enquanto estação,
nem na lembrança do prédio que foi demolido, sabe-se lá por que, e que encontra-se
em construção eterna, sem ninguém saber direito o que está sendo construído de
novo.
Voltar para a escola, estudar, pensar, conversar com pessoas mais velhas sobre esta história de Feira de Santana... reescrever esta história.