terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Sábado, carros de mão, frutas e verduras, gritos, olhares atravessados, moleques, padre, policial e ... a noiva!

Manhã de sábado e uma buzina estridente anuncia o caminhão de frutas e verduras chegando à feira. Vem das bandas de Sergipe. Ainda ontem à tarde chegara a caminhonete vinda da Paraíba, carregada de milho. A partir de quarta-feira, era um movimento de carro que fazia medo. A barca chegava do Recôncavo, carregada de bananas, e em seguida, não parava de chegar carros e carroças, carregados, cada um, de um determinado produto, trazido desta ou daquela região. O carro que buzinara vinha de Sergipe. Não ficava perto. Mas devia valer a pena vir até aqui. Trezentas léguas nos separavam de lá. Mas devia valer a pena. Na feira, de manhãzinha, fregueses e freguesas se misturavam... Encontravam-se e disputavam mercadorias. Aqui, pareciam lutar por batatas, cenouras, quiabos, maxixes; ali, parecia ser por pimentas, pimentão, couve, chuchu... Mais adiante os produtos da própria região: milho, feijão, farinha, feijão verde, ovos... A disputa era intensa por cada quantidade. Não que faltasse. Num período de chuvas, a produção aumentava consideravelmente. Todos já sabiam disto. Era justamente o contrário do que acontecia no período de estiagem. Nesta época do ano, entre os meses de março e agosto, por causa das chuvas do inverno, todas as colheitas estavam garantidas. Não faltariam frutas, verduras e legumes mesmo. Se fosse apurar, a produção local daria para todos. Mas a feira se agigantava. Vinham pessoas dos arredores, dos povoados vizinhos para vender e comprar. Até o padre da região se misturava ao povo num corpo-a-corpo que lembrava uma luta de vale-tudo. As rezadeiras que tinham, digamos, um bom contato com os serviços da casa paroquial informavam que ele preferia escolher os produtos que comeria ao invés de mandar alguém fazê-lo. Era daquela terra o santo padre e sabia que um olhar menos direcionado, faria lançar as mãos sobre os produtos menos indicados. Devido à astúcia dos comerciantes, não faltavam tomates apodrecidos, batatas-doces passadas, aipins duros demais – envelhecidos – e quiabos que não quebravam a ponta com facilidade, revelando que não estavam verdes. Não estavam no ponto. Misturavam-se aos que foram colhidos recentemente, e acabava dando um padrão de qualidade inferior que aquele merecido, pois os produtos colhidos na semana da feira eram de fazer inveja!
Na área próxima às verduras, barracas que vendiam frutas também eram numerosas. Às vezes, misturavam frutas e verduras, mas alguns barraqueiros organizavam sua vida e eram conhecidos por isto, por comercializarem apenas frutas. Melancias cada vez maiores e mais doces, umbus, pronunciado aqui imbú, uma fruta verde e pequena, excelente para sucos e a famosa imbuzada feita com leite; jabuticaba, pretinha e deliciosa, hummm! Araçás, bananas - que eram sortidas: prata, maçã, d’àgua, e da terra - além de cajus, cajás, mamões e outras que vinham de terras longínquas. Ali não se fazia muito a salada de frutas. Não era comum. Cada fruta era apreciada individualmente. Ninguém costumava misturar. Até a produção de suco, que era comum, não chegava a superar a degustação da fruta in natura.
O imbú sempre esteve presente na vida do povo da comunidade, numa relação muito favorável para os moradores de uma terra marcada por períodos de sol muito forte e prolongadas secas que poderia durar mais de um ano! Nas raízes, a árvore acumula água e ajudando na obtenção do líquido para qualquer necessidade, até para fazer café! As folhas sempre foram serventia para a alimentação do gado e a frutinha, verdinha ou amarela (quando madura), pode ser saboreada por qualquer animal da natureza, e o humano talvez seja o que mais se aproveita disso. A produção do imbu e curiosa: não existem plantações de pés de imbú. Existem imbuzeiros em quase todas as terras da região. Muitos, muitos, muitos. De várias características: carnudos, lisos, azedos, docinhos... Hum... Deliciosos! Achá-los na feira, não era tarefa das mais duras. Mais vale lembrar que somente entre Dezembro e Fevereiro haveria frutinhas nos bocapios, nos cestos, ou baldes.
Havia uma região da feira voltada para a comercialização de carnes. Ali, bois, carneiros, bodes, porcos e galinhas, eram vendidos de tudo quanto era jeito. Quartos de bodes e carneiros estavam dependurados num prego de ripa; quilos de carnes oriundas do boi, cupins, fígados, tripas... Estavam, simplesmente, jogados no balcão de madeira, para que cada freguês se sentisse à vontade para escolher. Um fato de carneiro ou porco, para se fazer um meninico ou sarapatel, custava pouco e satisfazia muita gente. Uma fatada era um prato especial; deveria ser saboreada quente, com amigos, e com uma pinga das boas e talvez algumas cervejas. Ah! Sempre que havia festas na casa do comerciante, ou do fazendeiro, serviam fatadas e bebidas. Divinas fatadas. Se fosse dia de batizado ou de alguma outra comemoração, poderiam ter um pouco de cada coisa. Carnes assadas, como churrasco, em fogueiras improvisadas, panelas de cerâmica, cozinhando meninicos, feijoadas e fatadas, num fogo de fogão à lenha... E tripas torradas numa frigideira, servidas com farofa e tomates com cebolas, como uma entrada, para que saboreassem e imaginassem o que estava por vir.
Havia também carnes de porco. Gordura – o toucinho – os pés e as orelhas. Tudo aproveitado para pratos diversificados. O torresmo era imbatível. Claro que fazia um mal danado! Mas... Pra quem? Ora, todos comiam e ninguém reclamava! Era uma das vantagens do viver naquele lugar. Também, com tanto trabalho no dia-a-dia! O roçado envolvia o trabalhador, ou trabalhadora, o dia todo. Quem se lembraria da gordura do torresmo?!? Quem se lembraria das feijoadas carregadas de orelhas e pés de porco? Dos cozidos? Ninguém ali. Todos gastariam no próximo dia de trabalho. No próximo dia comum a qualquer um daquele lugar. O trabalho era uma marca daquela gente...
O boi poderia ser comprado em qualquer canto. Talvez o açougueiro fosse o próprio criador. Talvez cuidasse daquele animal há alguns anos. Sabia tudo sobre a sua vida. Talvez desconhecesse o porco. Como viera parar ali? Ah! Comprara nas mãos de um amigo, de um povoado vizinho. Quem o criara? De que forma o alimentara? Em que condições criara o animal? Tratara-o bem? E aquele carneiro? Lembrava-se dele. Era do compadre da Serra Escura. Era um dos seus. Criado num capinzal que dava gosto. Aquela seria uma boa carne para comer. O bode viera dos lajedos... lá no alto da fazenda do Galego do Cuscuz. O galego viera das bandas de Xique-Xique. Trouxera alguns bodes e começara a criá-los ali. Tudo ia bem. Vendia um bode danado. E nos dias da feira, vendia muito mais ainda. O povo comprava que dava gosto. Naquele dia, depois da carne de carneiro, era a que mais vendia.
As galinhas eram comercializadas todos os dias da semana. Normalmente era a carne menos vendida nos dias de feira. Sabe-se lá por quê! Todos criavam, todos vendiam... Acontecia de algumas vezes, em algumas feiras, venderem mais ovos que galinhas. Até codornas – moqueadas – eram mais vendidas que galinhas. Mas se vendia galinhas.
Neste espaço de carnes, não se notava a presença das caças. Os animais eram vendidos no corpo-a-corpo. Os caçadores moqueavam os animais – veados, jibóias, codornas, teiús... Colocavam em cestos de cipós, e vendiam-nos oferecendo nas casas dos possíveis compradores. Algumas jias, capturadas à noite eram bastante apreciadas. Diziam parecer carne de galinha. Enquanto faziam cozidos de carne de teiús e mocós, as carnes de jias, veados e jibóias, eram assadas. E refinavam a culinária daquele lugar. A feira continuava com estas iguarias e uma variedade de cheiros. De carnes, de frutas, verduras e gente. Muita gente para um espaço que se tornava pequeno.
Meninos com carrinhos de mão atropelavam-se uns aos outros disputando outro tipo de mercadoria: fregueses. Poderiam carregar suas compras e ganhar alguns trocados. Andavam apenas de bermudas, sem camisa, sem sandálias, um ou outro era encontrado de tênis, com várias marcas de frutas que escorregavam pelos seus corpos. Vinham carregados de saquinhos de laranjas, de goiabas, de melancias, mas tão logo descarregavam seus carrinhos, voavam nas direções dos fregueses. Uma vez, até deu confusão por causa disto. Um destes meninos, saindo em disparada, passou por cima do pé de uma freguesa que não se fez de rogada: girando numa tentativa de encontrar com o olhar o moleque que havia atropelado-a, gritou! Lançou um grito tão estridente que quase acabou a feira! – mal se recuperou, pegou um belo pepino e lançou sobre o garoto! Já que ele não respeitava os mais velhos, seria acertado, castigado para aprender uma lição. O pepino deve ter saído a uns cento e dezessete quilometros por hora!!! Rasgava caminhos por entre barracas viajando na direção da cabeça do menino. Ora, acontece que a pontaria da dona senhora não era lá grande coisa. Passou longe do menino e... atingiu... Atingiu o padre! Este rodou, ou será que viu o mundo rodar? Caiu estatelado! Deu um gritinho (confessou logo depois), caiu e ficou esperando socorro. A multidão se desesperou. Uma comadre, daquelas freguesas assíduas da feira, logo saiu para ajudar a resolver tamanho problema: De imediato ela achava que poderia se destacar na missão padre atingido. Era só se dirigir à delegacia e notificar o ocorrido: polícia fora chamada!
A polícia local se resumia a um policial que normalmente não colocava os pés fora da delegacia. Fora os momentos em que saía para comer, dormia religiosamente, como se fosse devoto de um Éolo, ou Orfeu.
Mas o policial local era um bom sujeito. Chegara há pouco tempo à comunidade, mas conseguira um bom entrosamento com muitas pessoas. Até com as velhas senhoras e crianças. Morava num quarto da pensão do local, e vivia entre a delegacia e este espaço.
Algumas raríssimas vezes (juram) fora visto no bar da esquina jogando conversa fora e sinuca. Não parecia ser um bom jogador, mas também não era dos piores. Conseguia boas tacadas e quando o adversário permitia, fechava um jogo. Mas estava longe de ser um dos melhores do lugar. Ou de atrever-se a jogar com algum deles e ganhar. Não. Isto nunca aconteceu. Não jogava apostado com ninguém e quando se servia de uma bebida, ele mesmo pagava. Era boa gente. Ou parecia ser. Mas todos, em cochicho, falavam da sua solteirice. Por que não saía com as mulheres- fadas da comunidade? Será que tinha um contra feitiço? Será que a profissão, a corporação não lhe permitia algumas escapulidas? Bah! Ninguém acreditava nisto. Só se sabe que quando o sujeito chegou à feira, o padre fingiu um desmaio. Parecia querer chamar a atenção (mais ainda? depois de ter sido atingido pelo pepino!!!). Foi levado nos braços do policial até a sua casa. A casa paroquial. Melhorou, mas notou que uma multidão tomava a sua porta. Ele precisava saber controlar a situação... Pediu água. Perguntou o que acontecera e o que aquele povo fazia ali. O que será que queriam? O policial estava desconcertado. Será que o padre perdera a memória? Não se lembrava que estava na feira e fora atingido na testa por um pepino? O policial falava desconfiado. O povo começara a insinuar que ele levara a noiva para casa... E agora? O que diriam quando ele saísse da casa paroquial? Abusariam dele? Ou tratariam o caso com seriedade? Como ficaria a sua autoridade depois que carregara a noiv... o padre para a casa bem na manhã da feira, com todos olhando? Precisava sair e afastar o povo. Como reagiriam? E se ele precisasse conter alguém? Prender alguém? Aquele beberrão que dormia sempre à frente da cadeia, parecia querer lhe dizer algo sobre o padre. Ou pelo menos sempre resmungava algo sobre o santo padre, antes de desmaiar, naquilo que parecia ser dormir seu sono. Conhecera vários sujeitos daqueles. Mas este, (ou seria o lugar?), era diferente. Não parecia saber o que era ser um policial e, que sem a farda, um policial não passava de mais um sujeito qualquer, que come, bebe, acende bode, que sonha com o futuro, com festas e dinheiro. Mas também, quando andara sem a farda pela última vez? Ele sem a roupa de policial, o padre sem a batina... Droga. No que estava pensando? Lá fora continuava os sussurros sobre a sua vida, sobre o episódio na feira, o maldito pepino atirada a esmo, o menino endiabrado... Mas qual seria o motivo de falarem tão baixo sobre ele? O seu envolvimento com o padre? Os seus dias debaixo da lona da barraca, bebendo e esperando pacientemente a chegada da noite para, pardo, não ser reconhecido e melhor entrar na casa paroquial? Sabia que era apenas uma sombra sob um chapéu. Será que algum dia alguém o tinha visto? Talvez as senhoras que cuidavam da casa... Ora! E daí?!? Não poderia freqüentar a casa do padre? Não. Não poderia. Todos falavam e falariam da sua relação que já era sabida com o homem santo! Este por sua vez, continuava a fingir uma tontura. Chamara seu herói e esperava dele uma bela lição no menino – que a esta altura, identificado, já havia apanhado do pai, levado uma repreensão da senhora-freguesa, pois esta alegava que havia jogado o pepino por causa do carrinho no seu pé - e este o atingira, não escapando do momento de fúria daquela senhora! Mas se ela estivesse com uma melancia, ou uma jaca? Se estivesse com uma faca de tratar carne? Ora! Onde já se viu? Perder o controle daquela maneira!!! E finalmente, esperara pelo seu herói, pois queria tê-lo ali consigo. Almoçar com ele – claro - não poderia perder a oportunidade de agradecê-lo por tê-lo socorrido. A oportunidade estava ali, mesmo diante de suas mulheres, aquelas beatas, rezadeiras que não permitiam que desse um passo sem estar à sua sombra e a população da comunidade, que também já o importunara, de convidar o policial para ficar ali na sua presença até que se sentisse melhor. Que manhã de feira mais promissora! Mas será que tudo ocorreria como estava pensando? Nada lhe escaparia de ultima hora?
O sol não dava trégua, mas a população também não arredava o pé. Uma marcação. Queria notícias da saúde do padre. Mas fora apenas um pepinozinho que atingira a testa do vigário. Um susto e nada de mais. Mas a sua saída nos braços do policial dera à cena uma conotação de gravidade que não esperava. Agora, queriam uma notícia dele. Foi quando ele resolveu sair à janela e falar-lhes. Mostrou-se abatido – um ator profissional não lhe roubaria um prêmio de ser ovacionado por aquela cena. Perfeito. O povo começou a sair, misturando-se á feira que construíra, desconstruíra, reconstruiria de novo. O policial voltara à delegacia. Não aceitara o convite para o almoço. Não entendera as intenções do padre? Ou preferira não fazê-lo? Quais as reais intenções de tal convite? O vigário ficara louco. Não poderia jamais ficar ali. Ao sair da casa paroquial, teve a impressão de ouvir alguém falar quem sair por último é mulher do padre. Mas nem olhou para a direção de onde partira o grito de insinuação. Para a delegacia. Ali era onde se sentiria em casa, no seu mundo, entre celas, chaves, um facão, carimbos, uma mesa velha, uma sandália que usava quando tirava a botina, e... Ratos! O lugar era pequeno. Cinza-escuro numa parte e um tom bege noutra. Cor de burro quando foge, como costumavam falar no lugar. Não havia um só prisioneiro ali... Uma viva alma, além da dele. Faz tempo, prendera alguém por aquelas bandas. Foi uma ordem da capital. Um verdadeiro trio nordestino estava fabricando moedas falsas e precisavam ser detidos. Com urgência. O telegrama falava urgente e aguarde ação da policia federal. Ixe! A coisa devia ser seriíssima. Então ele rumou a toda para a tenda do ferreiro. Quem mais poderia estar fabricando tais coisas se não fossem eles?